Nacional Um

No paradigma actual da valorização inexorável das grandes vias de comunicação (quer físicas, como as auto-estradas, quer virtuais), existem espaços e momentos que continuam teimosamente a escapar ou, sejamos francos, aos quais é retirado protagonismo no fluxo de pessoas e mercadorias. Ainda assim, e considerando o desejo dos governos em construir mais e melhores infraestruturas de comunicação, as vias já existentes são frequentemente um repositório de características socioculturais específicas de uma região na medida em que acumulam já uma memória histórica, sustentada por várias décadas de funcionamento. As viagens, transacções, comércios, negócios e outras iniciativas que ali se desenrolam, rápidas, num qualquer restaurante de beira de estrada, na empresa de camionagem ou no armazém, e frequentemente em fugida para um qualquer outro local, reforçam a construção das ambiências pelos resquícios que ali são deixados nesses momentos.

A Estrada Nacional 1 (EN-1) ou, actualmente, Itinerário Complementar 2 (IC2), é uma dessas estradas. Construída no âmbito do Plano Rodoviário de 1945, representa o desejo da República Portuguesa em melhorar, então, os acessos entre as capitais de distrito. O trecho fotografado, entre Coimbra e Leiria, sempre de noite, e enquadrado na vida profissional do fotógrafo, na hora de regresso a casa, demonstra a heterogeneidade e identidade que ainda predomina nestas vias, em oposição às auto-estradas. Aquelas, linhas sem características próprias, onde o simulacro das estações de serviço é replicado a cada X quilómetros, e o único modo da população viajante identificar o trajecto e destino ao qual almeja é dado pelas placas, relembrando que, igualmente, só algumas saídas são permitidas.

Recentemente, o pavimento foi alvo de melhoramentos, dada a teimosia desta estrada e destas pessoas, anónimas, em preservar as suas actividades numa articulação local/global. Na noite, nas noites de viagem, continuam a circular as mesmas pessoas, os mesmos vultos e luzes, embora com menos frequência, ora para não pagar a portagem da auto-estrada, ora porque conduzir ali oferece mais estímulos visuais que permitem manter a atenção, diminuindo a sonolência, ora porque se há necessidades sexuais para cumprir existem estabelecimentos para tal, ora porque, é preciso dizê-lo, há que beber um Sumol de ananás com uma bifana quando a fome aperta, sendo certo que toda a gente sabe que as bombas da Galp em Pombal têm as melhores sopas e sandes.

A experimentação sistemática de uma estrada oferece, portanto, um conhecimento baseado na experiência que não só reforça a noção de que as vias secundárias ainda são necessárias para cumprir um papel que não se deve escamotear, mas também ilustra a maneira como o conceito de trabalho se modificou (em que as pessoas já frequentemente têm dois empregos em locais diferentes, estudam numa outra cidade que não a própria, ou procuram um item numa loja especializada que ali se instalou) e o carro é, ainda, algo entre o necessário e o prazenteiro para prosseguir com objectivos individuais.